Discurso da terceira idade
Emoções me rondam. Vertem do céu como chuva de flechas, voam como águias perseguindo a caça! Ameaçam-me. Dentro de mim um turbilhão rouba-me o centro e me domina. Subjugado, torno me amargo, descontente com tudo e com todos. Quando a idade chega, a gente se irrita por quase tudo; o som da tv, o cachorro do vizinho na varanda, sobre nossas cabeças; a criança que corre de um lado para o outro, pula, grita, chora, esbanja vitalidade! Faz nos lembrar da nossa, que se foi.
Tudo nos afronta!
O corpo dói. As juntas aguardam a hora de serem juntadas e levadas, todas juntas, ao ecoponto. É lá que se põe um ponto final! Mas antes, nada que uma graxa não resolva.
Em alguma prateleira, sempre haverá uma planta milagrosa ou uma pasta, capaz de lubrificar e revitalizar as articulações cansadas. Ainda não chegou a hora. Não é tempo de ponto final. Então vamos aderir às reticências e continuar…
Ainda que seja só no discurso, uma vez que a gramática nos permite estas proezas. Não é fácil entretanto, enganar a natureza, burlar os efeitos da idade, quando ela avança, embora a vaidade nos dê cancha!
Então me relaxo. As vezes me sento em um canto aconchegante e lá fico por horas, ouvindo músicas e pensando. Penso no que fazer no minuto seguinte, no dia seguinte. As vezes gasto tanto tempo pensando, que chego a pensar em parar e anotar tudo para não esquecer. Porque esquecer é sempre um risco. Quando os neurônios adquirem uma certa idade, vingam-se do “bullying” que sofreram quando jovens, ao serem chamados de tico e teco. Tomam para si as informações, lembranças e conhecimentos importantes e os trancam em um arquivo secreto. De lá não saem nem sob tortura.
Essa é a tal da perda de memória. A minha já não passa de 2 megabytes. Um horror!
Ainda assim, penso: é bom estar aqui. De vez em quando a memória volta. Aí aproveito e tento me lembrar só de coisas boas. Faço lindas viagens pilotando o tico e o teco ao mesmo tempo!
Incontinente, providencio o meu “backup", anotando em um pedaço de papel, tudo que me vem à lembrança nessa lacuna de lucidez. Sei que amanhã já não me lembrarei de onde o guardei, mas agora, cumpro o meu papel.
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